ADMINISTRAÇÃO E DIREITO: UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA

(Artigo publicado*)

 

Prof. Ms. Arlindo Carvalho Rocha

1.         A relação jurídico-administrativa

Os cursos de Administração existentes no país não costumam dar maior destaque a um tema de grande importância para todos quantos atuam nessa área: a estrita e necessária relação entre a Administração e o Direito.

Menos visível na atividade privada, na administração pública inexiste campo em que essa relação não se apresente, muito embora, por vezes, os próprios administradores públicos não se apercebam da sua importância, esquecendo-se de que as suas atividades cotidianas fundamentam-se na existência de um ordenamento jurídico que as definem, autorizam e orientam.

Aliás, a própria existência do Estado e, por conseqüência, a do governo, do qual o administrador público é o agente, dependem do estabelecimento desse ordenamento jurídico. Assim, o estudo da relação existente entre a Administração e o Direito, principalmente em se tratando da administração pública, deve ser objeto de especial atenção.

Nesse sentido, podemos tomar como exemplo a atividade de planejamento no setor público que nos permite compreender, claramente, a relação em questão. Considerando a síntese do processo administrativo, o planejamento, na sua plena realização, se integra no tempo (futuro-presente-passado), envolvendo a utilização de todas as etapas desse processo e, ao ser implementado, determina graus variados de mudanças sociais que afetam a vida dos indivíduos e instituições, exigindo, por essa razão, sustentação legal adequada para que possa ser implementado e aceito.

 

2. O Ordenamento Jurídico e o Estado

As nações, ao se constituírem, definem um modelo de sociedade, segundo normas e padrões culturais e comportamentais previamente estabelecidos e amplamente aceitos, que toma forma na constituição do Estado.

É o Estado que detém e exerce o poder, emanado do Povo que o constitui, e que se consubstancia na Constituição, de determinar os rumos para o seu futuro, estabelecendo os objetivos que lhe permitirá alcançar as metas desejadas, e de organizar-se, criando um aparato tecno-burocrático adequado a executar as atividades inerentes a esses objetivos -o governo.

Nesse contexto, o Estado adquire duas funções básicas, classificadas por Moreira Neto¹ como sendo de duas naturezas: a de natureza tecnológica, que define e cria os instrumentos por meio dos quais serão perseguidos os objetivos propostos e que, neste caso, vincula-se diretamente ao surgimento do governo, e a de natureza metodológica, que define e cria as condições de ordem e equilíbrio político, econômico e social necessárias à execução da função tecnológica.

A necessidade da implantação do ordenamento jurídico por parte do Estado provém da existência do conflito, latente ou declarado, no convívio social. Quando o conflito está latente, há que se prevenir o seu afloramento por meio do estabelecimento de técnicas de controle social que devem refletir as aspirações da sociedade, consubstanciadas, principalmente, no Direito Positivo. Por outro lado, quando o conflito aflora e chega à violação dos preceitos legais, há que se ter consciência de que essa violação é ilícita e passível de punição, bem como deve o Estado ter o poder e as condições indispensáveis de aplicação das sanções adequadas.

A inexistência de um arcabouço jurídico, e do conseqüente poder coercitivo que ele dá ao Estado, fatalmente levaria a sociedade ao que Hobbes² denominou de estado de natureza, isto é, à prevalência da condição natural do homem, na qual o seu desejo incessante de poder, limitado apenas pela lei do mais forte, o levaria à competição perpétua com seus semelhantes, a menos que um poder irresistível, visível, tangível e armado do castigo o leve ao cumprimento dos preceitos de conduta.

Ao Estado, portanto, compete prover os meios pelos quais possam ser atingidos aqueles objetivos previamente definidos, dentro de padrões civilizados de convivência social. Para tanto, e ainda que também ele esteja subordinado ao ordenamento jurídico, lhe são atribuídos na clássica divisão de Montesquieu, os poderes de legislar, isto é, preceituar normas de conduta para a sociedade, compatíveis com a consecução dos objetivos em questão (Poder Legislativo), e o de julgar e aplicar sanções quando os preceitos da lei não são cumpridos (Poder Judiciário).

Esses dois poderes são indispensáveis para que o terceiro poder atribuído ao Estado, o de executar as tarefas que permitam atingir os objetivos da sociedade, possa ser efetivamente exercido (Poder Executivo),

 

3. O Planejamento e o Ordenamento Jurídico

Na administração pública, o planejamento estruturou-se a partir da necessidade da sociedade de tomar ótima a alocação dos recursos públicos, com vistas à consecução mais rápida dos seus objetivos de desenvolvimento. Em outras palavras, o planejamento foi fruto da necessidade de racionalizar a busca do desenvolvimento.

A implementação dos planos e programas resultantes da atividade de planejamento no setor público, por sua vez, envolve um certo grau de mudança, acentuando modificações nas relações político-sociais dos indivíduos e das instituições. Daí tal implementação exigir condições institucionais, tais como apoio político, compreensão e participação popular, fundamentação legal adequada, estabilidade, força e prestígio do governo³ , todas tidas como indispensáveis à execução efetiva do planejamento e obtidas, intrínseca ou explicitamente, por intermédio da atividade jurídica, que representa, como já assinalado, a função de natureza metodológica do Estado.

Por outro lado, o planejamento é caracterizado por um conjunto sistematizado de fases que, segundo Carvalho¹¹ , obedecem a relações de interdependência e dividem-se em: conhecimento da realidade; decisão; ação; e crítica.

Ora, a execução dessas fases encerra o âmago do exemplo proposto, uma vez que é necessária toda uma estrutura de sustentação legal para permitir a execução e a validação de cada uma delas.

Assim, o conhecimento da realidade exige do planejador informações que lhe permitam fazer o diagnóstico e conhecer as tendências de uma determinada situação. No governo, a institucionalização de um sistema de informações determina a existência legal de uma estrutura burocrática que permita a coleta e o processamento dessas informações, com seus estatutos, regulamentos e normas. Determina, também, a existência de códigos e regulamentos que controlem a utilização e divulgação das informações, bem como de legislação específica que trate da obrigação dos indivíduos de prestarem tais informações. Enfim, o conhecimento da realidade demanda toda uma estrutura legal específica para que ocorra.

A decisão, por sua vez, relacionada com os objetivos, é essencialmente política e tomada em nome do Estado, o qual só existe, como já visto, a partir da existência do ordenamento jurídico que o constitui.

A ação, por outro lado, é a intervenção do Estado, por intermédio do governo, na sociedade. É o próprio exercício do poder delegado que, por si só, já é uma norma jurídica. Mais especificamente, a ação determina, a exemplo da primeira fase, a existência legal de órgãos e agentes executores das decisões tomadas, também reguladas por leis, normas, estatutos e regimentos e, como a primeira, exige uma estrutura legal específica para que possa ser executada e aceita pela sociedade.

É na ação, também, que a competência assume importância fundamental.

A competência é a atribuição formal de poder que o Estado delega aos seus agentes para que estes possam agir em seu nome. É formal porque a natureza das funções delegadas e os limites do poder para o seu desempenho são expressamente determinados por norma legal. Portanto, a própria autorização para que o agente do Estado possa agir, por ser norma legal, pertence ao ordenamento jurídico. Daí, se não houver norma legal, não há ação.

Observe-se, ainda, que diferentemente do administrador privado, ao qual é licito fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, o administrador público, no exercício das funções que lhes são outorgadas pelo Estado, está submetido ao princípio da legalidade, o qual sujeita-o, conforme nos ensina Meirelles¹² , aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e deles não se pode afastar ou desviar sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso.

A crítica, por fim, necessita de uma estrutura de acompanhamento, controle e avaliação que, como as demais fases, só é possível a partir de uma base legal adequada. Por outro lado, como o seu objetivo é o de possibilitar a realimentação e reorientação do processo, envolvendo novos conhecimentos da realidade para que novas decisões possam ser tomadas e novas ações executadas, a crítica resume todo o processo, que se baseia, como já visto, no ordenamento, jurídico.

 

4. Conclusões

O planejamento no setor público, entendido e aceito como uma atividade sistêmica de fases interdependentes que sintetiza na sua execução todo o processo administrativo, nos permite ver a exata dimensão da importância da relação entre a ação do administrador e o ordenamento jurídico do Estado.

Amato¹³ salienta essa relação ao afirmar que todo o ato administrativo se baseia, deforma direta ou indireta, numa norma jurídica. Também Woodrow Wilson²¹ referiu-se ao tema ao salientar que a administração pública é a execução detalhada e sistemática do Direito Público. Toda a aplicação particular da lei geral é um ato de administração. Assim, conquanto não haja qualquer dúvida de que a existência do ordenamento jurídico é indispensável para preservar os princípios universais de cidadania, regulando as relações sociais e controlando e limitando o poder do Estado, a existência de administradores, principalmente na administração pública, que não estejam conscientes e atentos para a profunda relação entre a sua ação e a ordem legal vigente, nos reaproxima do estado de natureza de Hobbes²², transformando o cidadão, de senhor, em refém do Estado.

Por tudo isso, é incontestável a importância de se destacar, em todas as oportunidades, a estrita e necessária relação existente entre a Administração e o Direito, mostrando e enfatizando os valores e princípios jurídico-legais que autorizam, orientam, interferem, limitam, validam e invalidam a ação do administrador.

 Referências Bibliográficas

(¹) MOREIRA NETO, Diogo de F. Curso de Direito Administrativo. p.5.

(²) MACPHERSON, C.B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke. p.29-58.

(³) HOLANDA, Antonio Nilson. O Planejamento no Processo de mudança. p.1 1.

(¹¹) CARVALHO, Horácio Martins de. Introdução à Teoria do Planejamento. p.36.

(¹²) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. p.82.

(¹³) AMATO, Pedro Mufloz. Administração Pública e Direito. p. 138.

(²¹) WILSON, Woodrow. O Estudo da Administração. p.29.

6. Bibliografia

1.      AMATO, Pedro Muñoz. Administração Pública e Direito. in: JAMESON, Samuel H. Que é Administração Pública. Rio de Janeiro, FGV, 1962.160p.

2.      CARVALHO, Horácio Martins de. Introdução à Teoria do Planejamento. 2ed. São Paulo, Brasiliense, 1978. 177p.

1.      HOLANDA, Antonio Nilson. O Planejamento no Processo de Mudança. Santiago do Chile, ILPES/OEA/BID, 1972. 22p.mímeo.

2.      MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. 318p.

3.      MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 172ed. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1992. 701 p.

4.      MOREIRA NETO, Diogo de F. Curso de Direito Administrativo. 10ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1992. 504p.

5.      WILSON, Woodrow. O Estudo da Administração. in: JAMESON, Samuel H. Que é Administração Pública. Rio de Janeiro, FGV, 1962. 160p.

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 (*) Artigo publicado na Revista do Tribunal de Contas da União, nº 64, abr/jun de 1995, p. 32/35. Brasília, março de 1996.

 

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