SUS - SISTEMA
ÚNICO DE SERVIÇOS
(Artigo publicado*)
Prof. Ms. Arlindo Carvalho Rocha
Esta é uma parábola, que seria
engraçada se não fosse trágica.
Imagine que existisse um certo
Ministério dos Serviços - MS, responsável pela assistência mecânica aos
veículos nacionais. Imagine, também, que nas oficinas públicas vinculadas ao
MS, em razão do imenso volume de trabalho e das grandes dificuldades
orçamentárias e financeiras, apresentasse a seguinte organização:
a) o salário médio dos Mecânicos é
de R$ 600,00;
b) em compensação, a jornada de
trabalho é reduzida (apenas quatro horas diárias) e os Mecânicos podem acumular
outros empregos, e
c) foi criado o SISTEMA ÚNICO DE
SERVIÇOS – SUS, com o objetivo de coordenar as ações das oficinas públicas nos
três níveis de governo e propiciar o atendimento integral e o acesso universal
e igualitário.
Para atingir esses objetivos,
permitiu-se que as oficinas privadas participassem de forma complementar das
atividades de assistência veicular prestadas pelo governo, mediante convênio
com o SUS.
Com essa organização, os Mecânicos
vinculados ao SUS passam a ter as atribuições de selecionar os veículos que dão
entrada nas oficinas públicas para serem ali consertados, ou encaminhá-los para
oficinas privadas conveniadas.
O procedimento é simples. Os
Mecânicos, ao fazerem a triagem dos veículos que chegam e mediante critérios
subjetivos (complexidade e especialização do serviço requerido) e objetivos
(espaço físico e recursos humanos disponíveis), "indicam" quais devem
ser "internados", isto é, os que deverão ser consertados na rede
pública, e quais os que devem ser encaminhados às oficinas privadas.
Para os que serão transferidos, o
Mecânico emite uma LAS (Laudo Analítico de Serviço), do qual constam, entre
outras, informações quanto ao tipo de serviço necessário, sua natureza, nome e
endereço do proprietário, uma análise bastante sintética e superficial do defeito
que se apresenta, além do nome e assinatura do Mecânico. Esse laudo vai para o
chefe do PAM (Posto de Assistência Mecânica) que, por sua vez, emite uma AIH
(Autorização de Internação em "Hospital veicular") e encaminha os
dois (automóvel e AIH) para a oficina escolhida.
O pagamento efetuado pelo MS por
esses serviços leva em conta, basicamente, os seguintes fatores:
- a remuneração da oficina
(instalações e pessoal de apoio);
- a utilização de equipamentos (analisadores
de motores, ferramentas especiais, estufas para pintura etc.);
- a utilização de materiais nos
consertos (peças, colas, tintas etc.); e
- a remuneração dos serviços
profissionais paga aos Mecânicos que fazem a análise e o concerto dos veículos
nas oficinas conveniadas ao SUS.
Esses fatores são ponderados
levando-se em conta a complexidade do serviço e o tempo necessário para a sua
realização, resultando daí uma Tabela de Remuneração de Atendimento pela Média
Básica do Investimento por Quantidade de Unidades Examinadas
-TRAMBIQUES.
A implantação do SUS e a
flexibilidade em relação à acumulação de empregos por parte dos Mecânicos,
permitiu o surgimento de várias oficinas privadas, algumas organizadas por
grupos de Mecânicos do próprio SUS.
Entre essas instituições estão a
"Assistência Especial para Tratores, Caminhões e Automóveis Ltda. -
AETCA" e a "Proteção Integral aos Caminhões, Automóveis, Reboques,
Tratores e Aparelhos Similares Ltda. - PICARETAS"
Tanto a AETCA quanto a PICARETAS
não possuem quadro próprio de mecânicos. Na verdade elas oferecem galpões,
bancadas, estufas, ferramentas, equipamento de testes, pessoal de apoio e
estoque de peças para que os Mecânicos, que não têm qualquer vínculo
empregatício com elas – são apenas prestadores de serviços – façam o conserto
dos veículos que lhes são encaminhados, em troca da parte da remuneração
específica de serviços profissionais da tabela do SUS.
JS é um típico Mecânico de oficina
pública. Diariamente quando chega ao trabalho já encontra uma sempre crescente
quantidade de veículos para serem selecionados e consertados. JS escolhe os
mais complexos e que exigem maior tempo de permanência na oficina e, ainda, os
que pagam proporcionalmente menos pelos serviços profissionais do Mecânico,
segundo a TRAMBIQUES, e os encaminha para internação. Os mais simples e aqueles
que propiciam uma remuneração proporcionalmente maior são encaminhados às
oficinas privadas.
JS age assim não porque seja
desonesto, mas porque as oficinas privadas não querem receber serviços
complexos (com risco de complicações futuras, como retornos, revisões gratuitas
etc.) nem os que demandam muito tempo de "internação" (i.e.
utilização das suas instalações), pois ocupam lugar nos boxes, requerem mais
atenção e segurança e, além disso, quanto maior a permanência, maior o perigo
desses veículos serem alvo de complicações típicas do ambiente desses
"hospitais veiculares" (pois correm o risco de serem atacados por
ferrugem ou sofrerem arranhões, manchas na pintura, pequenos amassados, entre
outras).
O dia de trabalho de JS começa
relativamente tranqüilo. Chega cedo à oficina e desenvolve o seu trabalho num
ritmos e eficiência razoáveis. É bem verdade que as condições locais não são
nada boas. Os galpões são velhos, as ferramentas, quando existem, estão caindo
aos pedaços, os equipamentos de análise e testes quase nunca estão funcionando,
o pessoal de apoio nunca está disponível e as peças de reposição há muito
acabaram e não foram repostas. Mas é verdade também que embora pequeno, o seu salário
mensal está garantido e ninguém lhe exige praticamente nada.
Saindo da oficina, às segundas,
quartas e sextas, JS vai para a AETCA (às terças, quintas e sábados ele vai
para a PICARETAS). Lá o ritmos é frenético. As instalações são ótimas, os
equipamentos são modernos e sempre funcionam, o pessoal de apoio é eficiente e
sempre há peças de reposição. No entanto não há tempo a perder. Como a sua
remuneração aqui é por veículo consertado, a quantidade é o que importa (afinal
ele tem uma família para sustentar e não pode comprometer o seu padrão de
vida).
Paralelamente a essas atividades,
JS ainda mantém uma pequena garagem para prestar serviços rápidos a quem se
dispuser a pagar. Entre seus clientes habituais estão muitos dos veículos que
vez por outra são atendidos pelo SUS.
Aliás, um de seus clientes lhe
contou que o SUS é um grande negócio para as oficinas privadas prestadoras de
serviços, pois como o MS não recebe recursos suficientes no orçamento para
investir na expansão e modernização das suas instalações, e o governo congelou
os salários do pessoal, cada vez mais veículos são encaminhados para essas
oficinas privadas. E o que era complementar virou principal. Além disso, alguns
poucos Mecânicos inescrupulosos, mancomunados com os donos de certas oficinas
privadas, estariam falsificando LAPs e AIHs, bem como consertando veículos
fantasmas. Segundo esse cliente, as fraudes não são descobertas em parte por
causa da desorganização e da corrupção existente em muitas gestões regionais do
SUS e, em parte, porque não há vontade real de "consertar" tal estado
de coisas.
JS tem sentido que a qualidade do
seu trabalho está caindo. Sente a necessidade de se atualizar. É, mas um
curso agora, nem pensar! Parar de trabalhar por algum tempo significa abrir
mão de receber dez ou doze vezes o que ele ganha no SUS, além de ter que
arcar com os custos do curso. O ideal seria um curso promovido pela própria
oficina, mesmo assim no horário do expediente.
JS tem percebido, também, que os
interesses de seus patrões (os donos das oficinas privadas nas quais trabalha e
o governo) são conflitantes, pois perseguem objetivos opostos (a maximização do
lucro na oficina-empresa versus a mecânica universal e gratuita
na oficina pública). Mesmo a sua garagem particular não se coaduna com as suas
atividades no SUS, pois ele sempre acaba induzindo a ida dos veículos de seus
clientes para as oficinas privadas, não só por oferecerem melhores condições de
atendimento, mas, principalmente, porque assim ele pode ganhar dos dois lados.
Tanto um valor adicional cobrado diretamente do cliente, e previamente
combinado, quanto a remuneração dos serviços profissionais paga pelo
Departamento à oficina, de acordo com a tabela da TRAMBIQUES, que lhe é
repassada.
Pensando na vida, JS começa a
perceber que está se transformando numa máquina, só preocupado em ganhar
dinheiro. A satisfação que sentia ao exercer sua profissão já não existe mais.
Agora tudo é feito pensando no dinheiro que irá ganhar a cada veículo
consertado. É verdade que quando está trabalhando na oficina pública ainda
sente algum resquício daquela satisfação. Afinal, ali ainda consegue dar um
pouco de atenção desinteressada para determinados veículos e mesmo
"gastar" algum tempo com certos casos interessantes que merecem uma
análise mais detalhada. É, mas as condições de trabalho não ajudam nem um
pouco!.
Enfim, a$$im é a vida!
Felizmente, nada disso é verdade.
Ao menos não em relação às oficinas. Já quanto ao SUS...
__________________
(*)
Artigo publicado no Informativo "União",
de 24/04/96, do Tribunal de Contas da União. Brasília, abril de 1996.